POR QUE CONVERSAR FORA DA BRIGA?

Hoje se tornou importante — talvez até urgente — falar sobre algo que parece simples à primeira vista, mas que tem afetado intensamente as relações afetivas: conversar fora da briga.

Sim, conversar quando tudo está calmo. Longe do calor da discussão, da angústia, do mal-estar. Fora da pressa de se defender ou de resolver, a qualquer custo, aquilo que machuca. Porque nem toda troca de palavras é, de fato, um diálogo — e entender essa diferença pode ser fundamental. Tanto para o psicólogo em início de carreira, que precisa ajudar seus clientes a nomear e elaborar as próprias relações, quanto para qualquer pessoa que deseje construir vínculos mais conscientes e cuidadosos no cotidiano.

Vamos com calma.

Primeiro ponto: diálogo não é apenas sentar e falar. Não é despejar tudo de uma vez, nem tentar convencer o outro de que sua visão está certa. Neste texto, diálogo significa uma conversa entre duas pessoas que demonstram a intenção genuína de escutar e de serem escutadas. E mais do que isso: que estejam, naquele momento, em condições minimamente semelhantes em termos de poder, responsabilidade e disponibilidade emocional.

Ou seja, se uma está exausta, tomada pela raiva, e a outra tranquila, esperando apenas um pedido de desculpas, já há um desequilíbrio que compromete a possibilidade de uma troca verdadeiramente construtiva.

Imagine um casal: um dos dois está emocionalmente sobrecarregado, lidando com o trabalho, os filhos e o cansaço acumulado. O outro sente-se distante e busca aproximação por meio de uma conversa. A iniciativa é legítima, claro. Mas talvez não seja o melhor momento. Porque quem está tentando apenas sobreviver ao dia tende a receber qualquer fala como cobrança — e não como tentativa de aproximação.

A clínica mostra isso com frequência. Um cliente diz que “tentou conversar”, mas a troca se transformou em acusação, cobrança, ataque. O outro respondeu tentando se defender — com silêncio ou com raiva. E ambos saíram da situação com a sensação de que “não dá mais”.

Por isso, conversar fora dos momentos de urgência pode ser decisivo. É quando não estamos mais em modo de defesa, tentando resolver algo de forma imediata, mas sim mais abertos a compreender, juntos, o que realmente está em jogo. A urgência, quase sempre, transforma qualquer tentativa de conversa em uma corrida para aliviar o desconforto — e não para entender a origem dele.

Aliás, vale destacar: durante uma briga, o foco principal raramente é o outro. É a própria dor. É o impulso de se proteger, justificar ou sair da situação o mais rápido possível. E tudo bem — essa reação também é compreensível. Mas não é nesse estado que conseguimos ouvir com profundidade.

Há clientes que relatam só conseguirem falar com seus parceiros quando explodem. E dizem: “tentei conversar várias vezes, mas ele só me escuta quando eu grito”. Isso se repete em muitas relações. O grito vira sinal de urgência. E quando algo se torna urgente, a tendência é reagir — não refletir.

Agora imagine se, após esse conflito, o casal pudesse retomar o assunto. Não para reabrir a briga, mas para compreender. Para perguntar: “O que aquilo significou pra você?”, “Por que te afetou tanto?”, “O que posso fazer diferente da próxima vez?”.

Parece simples, mas isso é raro. Raro porque dá medo. A maioria diz: “agora que está tudo bem, por que voltar nisso?”. Mas é aí que mora o risco. A sensação de alívio vira desculpa para não tocar mais no tema (por qual razão?). Só que o “alívio” pode estar escondendo o que ainda machuca e que, inevitavelmente, voltará à tona.

Lembro de um exemplo da infância. Quando eu quebrava alguma coisa — um copo, um brinquedo — minha maior preocupação era que ninguém percebesse. Eu não queria entender o que levou ao erro. Eu só queria evitar a punição. Só queria que tudo voltasse ao normal. E isso, muitas vezes, se mantém na vida adulta: evitamos revisitar temas porque confundimos silêncio com solução.

Na clínica, vemos esse padrão. Pessoas que não retomam certos assuntos porque “já foi resolvido”. Mas não foi. Apenas foi abafado. A dor continua lá — e o risco de repetir a cena também.

Agora pense na possibilidade de ensinar nossos clientes a revisitarem o que machucou, fora do momento da dor. Construir, aos poucos, um espaço onde seja possível falar sobre o que feriu, mas com o distanciamento necessário para compreender, e não apenas reagir. Onde seja possível dizer: “quando você fez aquilo, eu me senti deixado de lado. Não acho que tenha sido por mal, mas aquilo me tocou”.

Esse tipo de fala não nasce do impulso. É fruto de elaboração. E essa elaboração só se torna possível quando a urgência dá lugar à curiosidade, à escuta e à disposição de olhar para o outro com mais clareza.

Exemplo clínico (fictício e didático)

Lucas, 28 anos, iniciou a terapia dizendo que sua parceira “nunca escuta o que ele sente”. Contou que, na semana anterior, discutiram após ela esquecer uma data significativa. Ele gritou, ela chorou, e ficaram dois dias sem se falar.

Na sessão, perguntei: “Vocês voltaram ao assunto depois disso?”. Ele respondeu: “Pra quê? A gente já tinha feito as pazes…”.

Segui: “E você entende por que aquilo te doeu tanto?”. Silêncio.

Foi aí que começamos a construir uma nova possibilidade: voltar à cena, mas agora fora da briga. Falar de novo, mas com outra razão (função). Não para se defender ou cobrar, mas para compreender o que aquele esquecimento representou na história emocional dele.

Na sessão seguinte, Lucas relatou: “Foi estranho no começo, mas ela escutou. E eu também percebi que ela estava esgotada naquele dia. Nem foi por mal. Mas só consegui entender isso porque já não estava mais tentando provar nada”.

Essa mudança — na função do comportamento e da conversa — é o que transforma uma troca em diálogo. E o diálogo, por sua vez, em aprendizagem.

E se o assunto for difícil?

É comum ouvir: “Mas tocar nesse tema agora vai estragar o clima”. Essa frase, por si só, já revela muito sobre a relação. Se o assunto ainda incomoda, é sinal de que ainda não foi elaborado. E se não pode ser falado com calma e profundidade, continuará controlando a relação — silenciosamente.

Chamar algo de “difícil” pode ser apenas uma forma de dizer que nunca aprendemos a lidar com aquele tipo de conversa. É como afirmar que dirigir é impossível só porque ninguém na sua família dirige. Não é o tema que é complicado. É o repertório que está pouco desenvolvido.

E isso, na terapia, pode se tornar uma intervenção valiosa. Em vez de insistir que o cliente “perdoe logo” ou “supere rápido”, podemos perguntar:

  • “Você sente que já entendeu o que isso significou pra você?”
  • “Consegue imaginar como falar disso com seu parceiro quando a dor tiver diminuído?”
  • “Se não precisasse se defender, o que gostaria que ele soubesse?”

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Comments

Uma resposta para “POR QUE CONVERSAR FORA DA BRIGA?”

  1. Avatar de Lug
    Lug

    Perfeito esse texto, se fossemos “ensinados” como ter conversas difíceis na vida adulta evitariamos muitos conflitos principalmente na vida amorosa. Mas ainda bem que existe a terapia.

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