Há quem acredite que só merece alcançar aquilo que já está planejado e emocionalmente estabelecido, resolvido. Que um projeto só vale quando nasce perfeito, emocionalmente seguro; quando o futuro já foi desenhado ou, pelo menos, refletido; quando o mapa inteiro está colorido com a precisão de quem nunca errou o caminho. E então, nesse sentido, passamos dias, dias e, às vezes, meses arrumando gavetas mentais, ajeitando ideias, ajustando expectativas, esperando que o terreno fique firme para que o primeiro passo aconteça.
Mas o primeiro passo nunca nasce do desejo.
O desejo é leve demais para carregar o peso do movimento.
Além de já ser parte do primeiro passo, ele não é o início: ele já compõe parte do percurso.
O que empurra de verdade é a contingência (circunstância) do agora: o pequeno gesto que inaugura o caminho, mesmo que o caminho ainda não exista por completo (teimo em acreditar que ele nunca existirá por completo).
Somos encantados pela fantasia da conclusão. Acreditamos que começar é assumir um pacto com o fim, como se todo início carregasse uma dívida. Mas nada na natureza sustenta essa regra. As árvores nem sempre completam seus ciclos, rios secam, animais desaparecem, estrelas morrem no meio da própria história. A vida, essa que nos atravessa, acaba sem nos perguntar se estávamos prontos.
Por que, então, pedimos aos nossos projetos uma perfeição que nem a existência possui?
A ideia de que “tudo que começo eu devo terminar” é uma regra cultural, não um dado da realidade. É um controle verbal que, muitas vezes, não corresponde às contingências reais.
E, quase sem percebermos, ele cria dois efeitos principais:
Paralisação: se eu só posso começar algo que vou terminar, então não começo nada.
Procrastinação: se eu interromper, sinto culpa, como se tivesse violado uma lei universal… então é melhor esperar o “melhor momento” para começar.
Tenho a forte impressão de que a vida não funciona assim (eu ainda estou aprendendo a respeito…).
Talvez seja o medo da interrupção. Talvez a culpa de parar no meio. Talvez essa voz herdada que diz: “Se começou, tem que terminar”. E assim, antes mesmo de agir, já estamos paralisados pelo fantasma do fracasso: a ideia de que qualquer pausa significa derrota, e qualquer fim antes do “idealizado” fim significa que não fomos bons o bastante.
Mas olhar de perto revela o contrário.
Quando um comportamento não encontra reforço, ele desmonta.
Quando o caminho perde brilho, os pés naturalmente paralisam.
Quando o mundo ao redor deixa de sustentar o gesto, ele silencia.
Não há moral nisso. Há apenas contingências operando.
É estranho perceber que vivemos mais para insistir do que para existir. Queremos garantir que tudo se estenda até um final honrado, como se a vida fosse uma prova e o importante fosse cruzar a linha. Mas e se a linha nunca importou? E se o que importa é a travessia — essa dança temporária entre o que fazemos e o que o mundo devolve?
Eu começo um livro e posso não terminá-lo.
Posso começar uma caminhada e voltar antes da metade.
Posso iniciar um curso e decidir interrompe-lo no final, sem parecer contraditório.
Posso levantar uma ideia e deixá-la adormecer, sem culpa, sem dívida, sem derrota.
A vida inteirinha opera assim: começa, vibra, muda, some… e tudo bem. Tudo bem mesmo!!
Construímos uma obsessão pelo desempenho, como se cada ato precisasse justificar sua própria existência com uma conclusão brilhante — e uma postagem mentirosa no Instagram. Mas, às vezes, o valor está apenas em ter vivido o instante que coube. Em ter tocado a superfície de algo que não precisava virar monumento.
Começar é simples.
É quase silencioso.
É só ajustar o ambiente para que um gesto aconteça.
E se esse gesto encontrar ecos, ele continua.
E se não encontrar, ele se encerra… como seria esperado de qualquer fenômeno natural.
Talvez a verdadeira coragem esteja não em terminar, mas em permitir que algo exista mesmo sem a garantia do final. A coragem de começar nu, frágil, incompleto. A coragem de viver no intervalo entre o possível e o improvável.
Nada nos pertence até que aconteça.
E tudo que acontece só existe porque um dia, sem certezas, demos o primeiro passo.
O resto é vida se fazendo.
Não para durar, mas para pulsar enquanto houver tempo.

Deixe um comentário