CONVERSAR NÃO É TERAPIA: A IA NÃO VAI PREENCHER O VAZIO QUE DEIXAMOS.

Quando se fala em terapia, é comum imaginar uma sala com iluminação aconchegante, um profissional sentado em uma poltrona e, principalmente, um diálogo profundo (para alguns, ainda surge a imagem do divã, mas isso é assunto para outra hora).

Diante de tantas discussões que usam essa palavra, vale perguntar novamente: o que é terapia, afinal? E indo além, o que é psicoterapia? Embora, no senso comum, essas palavras pareçam sinônimas, a história mostra que não são. A pergunta que fica é se deveriam mesmo ser usadas como se fossem. Considerando as interpretações equivocadas que essa confusão alimenta, não seria válido buscar uma compreensão mais radical dos elementos que determinam e diferenciam uma da outra?

A palavra terapia vem do grego therapeia, que significa tratamento, cuidado, serviço[1]. Originalmente, designava qualquer prática voltada a aliviar um sofrimento ou restaurar o equilíbrio. Por exemplo, um ritual, um remédio, um cuidado com o corpo ou com o espírito.

A psicoterapia, por sua vez, é um recorte técnico e histórico bem mais recente: a aplicação sistemática de teorias “psicológicas/comportamentais” e procedimentos de intervenção para promover mudança comportamental, emocional e cognitiva, sempre mediada pela relação entre um “profissional qualificado” e o cliente. Por isso, não é qualquer conversa que se torna psicoterapia. Trata-se do uso planejado do conhecimento para analisar, intervir e acompanhar o desenvolvimento comportamental de uma pessoa.

Por isso, dizer que alguém está “fazendo terapia” ao conversar com uma IA é como afirmar que está “sendo consultado por um médico” só porque pesquisou sintomas no Google. Essa confusão diz mais sobre o nosso tempo do que sobre a tecnologia em si. Vivemos uma era em que a palavra virou jogo: discute-se se o chatbot faz “terapia” ou não, como se o problema fosse apenas de intenção ou significado, em vez de ser uma questão material.

Enquanto isso, o que provavelmente tem determinado essa busca é negligenciado: as pessoas estão isoladas. O vizinho virou ameaça e o professor associado a um doutrinador. O pai, o primo, o irmão, o tio se tornaram presenças cercadas de desconfiança. O espaço para uma conversa genuína, não mediada por algoritmos, se tornou raro. Basta observar a necessidade cada vez maior de compartilhar momentos e declarações em um mundo virtual (aquelas mensagens maravilhosas com fotos no aniversário de um familiar, mas pessoalmente é apenas um: “Opa, bom?! Óh, Parabéns.”).

No livro Modernidade Líquida, de Bauman, se não me falha a memória, lembro de concordar ao reconhecer naquelas palavras a constatação de que os vínculos se tornaram frágeis, instantâneos e descartáveis, dissolvendo-se na mesma velocidade com que surgem. Assim, quando não há solidez nos laços, qualquer relação se torna substituível — até mesmo por um código que simula empatia ou entrega respostas que reforçam o “delírio coletivo”.

Mais grave ainda são as condições materiais cada vez mais restritas, que limitam o acesso a serviços de saúde mental de qualidade. O tempo, o dinheiro, o deslocamento — tudo isso pesa na hora de fechar a conta. E quando não se consegue pagar por uma escuta real, recorre-se a uma escuta artificial.

A IA não é o inimigo: é o sintoma. As pessoas sempre usaram diários para registrar pensamentos, angústias e ideias sobre o cotidiano. Mas, agora, o diário deixou de ser apenas um caderno silencioso: tornou-se interativo, cria categorias, identifica padrões, oferece conselhos prontos (só entre nós, vou abrir o coração: confesso que, às vezes, até surpreende com respostas criativas). A diferença é que, nesse novo formato, o diário “fala de volta”, mas não devolve presença humana.

É compreensível que exista alívio em falar, em ser ouvido, mesmo que seja por um sistema que imita uma presença. Pode até ser desejável, em certa medida, que alguém encontre nisso uma primeira forma de apoio. Mas transformar isso em uma suposta ameaça de “substituição de psicoterapeutas” é desviar o debate para um falso problema. O alarde é grande, mas o foco está invertido. Não é a IA que ameaça a psicoterapia, e sim a precariedade relacional e material que empurra sujeitos a buscarem, de qualquer forma, o que falta: um ouvido, uma palavra, uma companhia. (Me fez lembrar do paradigma de enfrentamento semelhante ao uso de substâncias psicoativas, mas isso fica para outro texto.)

Não se trata, portanto, de proteger a profissão como quem protege uma marca de mercado. Trata-se de enxergar a materialidade da situação: faltam espaços concretos para o diálogo real. A IA não cria o isolamento, apenas ocupa o vazio, preenchendo-o com frases que não aprofundam, não questionam, não reposicionam. E mesmo que, no futuro, aprenda a fazer tudo isso, continuará vazia de uma história humana de contato constante com o contraditório, angústia da escolha e finitude existencial (dica: leia o livro “O homem bicentenário”).

Por isso, IA não é, e não será, um meio de psicoterapia.

Desse modo, questionar se a IA faz ou não faz “terapia” é uma pergunta compreensível diante do contexto social, mas ingênua demais — como se fosse isso que realmente precisasse de resposta. Enquanto isso, o que deveria preocupar acaba esquecido: o esvaziamento dos laços, o fracasso coletivo em sustentar redes de apoio, o medo de confiar no outro e o empobrecimento do tempo para cuidar e ser cuidado.

Enquanto a conversa seguir presa ao jogo de palavras, nada muda na prática. E o essencial se perde: desenvolvimento humano não se instala em monólogo com um algoritmo. É relação, presença, conflito, elaboração. E tudo isso, por enquanto, ainda é e continua sendo exclusivamente humano.


[1] Claro que essa informação não vai mudar a sua vida, o objetivo do texto não é esse… se pensarmos em encontros, nenhum vai transformar tudo, apenas redirecionar o vento que te empurra.

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