PSICOTERAPIA E O MITO DA DEPENDÊNCIA: UMA LEITURA FUNCIONAL

Existe uma crítica recorrente à psicoterapia que afirma que o cliente pode “se tornar dependente do psicoterapeuta”. À primeira vista, essa preocupação parece legítima; afinal, promover autonomia é um compromisso ético fundamental para qualquer profissional da saúde mental (assim como do professor, facilitador, instrutor, treinador?!). No entanto, quando essa crítica é generalizada ou descontextualizada, ela se transforma em um ruído conceitual que pode prejudicar a compreensão da própria função da psicoterapia dentro de um momento histórico e cultural específico.

DEPENDÊNCIA: UMA ANÁLISE FUNCIONAL, NÃO MORAL

Dentro do contexto da Análise do Comportamento, a noção de dependência não é avaliada com base em julgamentos morais ou impressões subjetivas, mas segundo critérios funcionais: que contingências estão mantendo aquele padrão de comportamento? Está havendo generalização dos repertórios para o ambiente natural? Existe discriminação de reforçadores para além da sessão? O cliente emite comportamentos de maturidade[1]?

Se a resposta a essas perguntas for “sim”, o vínculo terapêutico pode estar cumprindo uma função de suporte contínuo e promoção de repertórios, não de aprisionamento. A permanência na psicoterapia, nesses casos, é uma escolha sustentada por reforçadores legítimos, e não um sinal de manutenção arbitrária.

TEMPO DE PSICOTERAPIA NÃO É MEDIDA DE FRAQUEZA OU INCOMPETÊNCIA

A analogia com a atividade física pode ajudar: estar em psicoterapia por muito tempo não é, por si só, um indicativo de dependência. Assim como permanecer por anos numa academia não significa fragilidade física. Alguém pode continuar treinando por prazer, por rotina, por manutenção da saúde ou “simplesmente” porque reconhece que aquilo lhe faz bem.

O mesmo vale para a psicoterapia. Muitas pessoas escolhem manter esse espaço porque ele continua sendo reforçador, útil e funcional. Há quem busque o acompanhamento em momentos de crise, mas também há quem permaneça por reconhecer o valor de um espaço contínuo de reflexão, elaboração e crescimento.

Do ponto de vista terapêutico, seria coerente falar em dependência quando o comportamento do cliente seria mantido exclusivamente pela presença do terapeuta, sem possibilidade de ocorrer ou se manter fora dos parâmetros do modelo de clínico. Em outras palavras, quando não há generalização de repertórios para outros contextos.

Fora disso, estamos falando de vínculo, uma relação que pode ser tanto uma expressão de escolha consciente, quanto uma prática intencional de autocuidado.

VIVER É CONTINUAR: A CLÍNICA TAMBÉM

A vida não é uma corrida com linha de chegada (mas todo mundo quer o bônus do ganhador). Ela é feita de práticas repetidas e cotidianas, transformações graduais e revisões constantes de sentido. Nessa lógica, ter um espaço terapêutico pode ser justamente o que mantém a saúde emocional em movimento.

Esse espaço pode servir para diferentes funções ao longo do tempo: ser um lugar de elaboração e desenvolvimento em momentos de crise, de reorganização em fases de transição ou mesmo de sustentação em tempos de estabilidade. Patologizar a continuidade do vínculo clínico é correr o risco de reforçar a ideia de que autonomia significa desligamento afetivo — o que é, no mínimo, uma falácia.

O CONTEXTO SOCIAL DA CRÍTICA: QUANDO A CULTURA DA AUTOSSUFICIÊNCIA DITA A REGRA

É importante reconhecer que a preocupação excessiva com a chamada “dependência” em psicoterapia não surge no vazio. Ela está inserida em um contexto social mais amplo, marcado por discursos que romantizam a autossuficiência emocional e a ideia de que pessoas saudáveis devem dar conta de tudo sozinhas.

A cultura da performance, a valorização da produtividade “individual” e o modelo neoliberal de sucesso acabam influenciando até a forma como percebemos nossos vínculos afetivos e profissionais. Nesse cenário, permanecer em psicoterapia por anos pode ser visto — erroneamente — como sinal de fraqueza, incapacidade de caminhar sozinho, ou, também, modelo psicoterapêutico pseudocientífico (vou precisar usar outro texto para falar sobre esse ponto específico).

Mas a verdade é que não existe sujeito fora de relações. Somos constituídos pelas nossas interações, pelas histórias que construímos com os outros e pelas redes de apoio que mantemos ao longo da vida.

Isso não significa, porém, que riscos éticos não existam. Como em qualquer área da atividade humana, há profissionais que podem agir de forma imoral, intencionalmente exploratória ou clinicamente negligente. Existem, sim, situações em que um terapeuta pode reforçar padrões de manutenção artificial da terapia por interesses próprios. Mas reconhecer essa possibilidade não invalida o valor de um vínculo terapêutico construído de forma ética, funcional e a serviço do cliente. A análise deve sempre considerar o caso concreto, com atenção às contingências que mantêm a relação terapêutica.

Vale ainda um alerta importante: é preciso cuidado para não transformar esse argumento em uma defesa ingênua de vínculos terapêuticos mantidos a qualquer custo, como se a responsabilidade afetiva do psicoterapeuta incluísse o dever de sustentar o cliente independentemente das condições materiais de ambos. A clínica é uma prática profissional que acontece dentro de um contexto concreto, com custos de tempo, energia e organização. Assim como o cliente precisa considerar suas condições para permanecer ou não, o terapeuta também precisa ser claro sobre os limites que garantem a sustentabilidade do próprio trabalho.

O fato de um terapeuta interromper o atendimento caso o cliente não possa mais arcar com os honorários não representa um desligamento afetivo no sentido emocional ou ético, mas uma consequência natural das condições materiais em que a relação terapêutica se estabelece. A metáfora pode ser ampliada: assim como alguém pode precisar mudar de casa ou vender o carro em momentos de readequação financeira, o vínculo terapêutico também pode passar por ajustes: seja por interrupção, seja por renegociação.

A questão central defendida neste texto não é a de manter a psicoterapia a qualquer custo, mas a de reconhecer que a duração do vínculo, quando possível e desejada por ambas as partes dentro de condições reais, não deve ser confundida automaticamente com dependência ou fragilidade emocional. A escolha de permanecer em terapia, assim como a de encerrá-la, acontece dentro de um equilíbrio entre desejo, necessidade e possibilidade.

INTERDEPENDÊNCIA É MATURIDADE, NÃO FRAQUEZA

O medo da “dependência” em psicoterapia muitas vezes carrega esse ideal irreal de autossuficiência. Como se o ápice da saúde mental fosse nunca mais precisar falar sobre si com ninguém. Essa expectativa é incompatível com a condição humana que construímos.

Se um cliente escolhe permanecer por anos em psicoterapia, pode estar apenas decidindo continuar uma conversa importante, como uma conversa que lhe serve como referência, que o ajuda a pensar, a sentir e a agir com mais clareza no mundo.

E quando essa escolha é sustentada por contingências ambientais naturais, por uma história de reforçamento que inclui crescimento, desenvolvimento e expansão de repertórios, ela não configura um fracasso terapêutico. Ao contrário: pode ser um indicativo de que o processo terapêutico está alinhado com as necessidades reais da pessoa.

UM OLHAR CLÍNICO E ÉTICO: FUNÇÃO, NÃO DURAÇÃO

Nesse sentido, a Análise do Comportamento nos convida a olhar para o que mantém o comportamento, e não apenas para o tempo que ele dura. Vínculos duradouros em psicoterapia não são, em si, bons nem ruins, e sim fenômenos que precisam ser analisados funcionalmente.

A pergunta central não deve ser “há quanto tempo essa pessoa está em terapia?”, mas sim: “Que efeitos essa relação tem produzido na vida dela?”

Se o vínculo terapêutico está a serviço da ampliação de repertórios, da discriminação mais refinada de contingências e da melhoria na relação do cliente com o mundo, então ele é parte do sucesso do processo terapêutico, e não de sua falha.

NINGUÉM SE SUSTENTA SOZINHO

Reconhecer que somos interdependentes (também com o ser humano da clínica) faz parte de uma psicologia ética, sensível e alinhada à complexidade da vida humana.

O convite que fica é simples: antes de rotular um processo terapêutico longo como “dependência”, é preciso olhar com cuidado para a função que esse vínculo cumpre na vida do cliente.

Afinal, quantas relações na sua vida você cultiva não porque precisa, mas porque reconhece que elas fazem bem?


[1] Leia https://itcrcampinas.com.br/pdf/helio/maturidade.pdf para uma definição clara do termo.

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