Quero falar sobre um tema que, confesso, sempre me desafiou bastante. Ainda hoje o considero complexo, mas ele passou a fazer mais sentido há pouco tempo, especialmente depois que o Hélio, com sua habilidade de simplificar conceitos e traduzi-los para a prática clínica, me ajudou a organizar melhor essas ideias (pai é pai, né?!).
Mais especificamente, quero explorar com você as Contingências Motivacionais, um conceito articulado por Hélio Guilhardi (ainda sem texto oficial publicado) dentro do universo da Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR). Trata-se de uma noção fundamental para compreendermos o que costuma ser chamado de “motivação” no comportamento do sujeito, principalmente nos contextos que surgem nos diálogos entre cliente e psicoterapeuta.
Antes de avançar, quero contextualizar, principalmente para quem está chegando agora na Análise do Comportamento (AC): afinal, o que é uma Operação Motivacional (OM)?
A definição clássica aparece em diversos textos: trata-se de um evento ou condição que altera temporariamente o valor de um reforçador ou estímulo aversivo, e a probabilidade de comportamentos relacionados a eles. Bem tranquilo, certo? Essa é uma base familiar e amplamente conhecida.
O problema começa quando essa definição, tão precisa dentro dos contextos de pesquisa, precisa ser traduzida para além do ambiente laboratorial. Quando atuamos na clínica, com humanos — seres cheios de variáveis confusas, dinâmicas, simbólicas e imprevisíveis — temos acesso limitado ao conjunto de controles que exercem influência sobre o comportar-se dentro das contingências.
Diferente do que ocorre com ratos, pombos ou outros animais em laboratório, ali a condição total é manipulada pelo experimentador[1]: Quem são os pais? Qual é a hereditariedade? Qual a alimentação? Que tipo de exposição já ocorreu? Qual exposição será feita? Qual manejo é possível, considerando os determinantes ambientais e a estrutura institucional disponível?
No laboratório, se preciso testar uma hipótese a respeito de uma resposta, escolho as condições que influenciarão essa relação, manipulo variáveis ambientais, “deixo o rato sem acesso à água”, e pronto[2]. O organismo responde de acordo com a privação e com as condições ambientais que foram manipuladas de forma planejada (e outras que, inevitavelmente, foram ignoradas).
Já na clínica, ainda que os termos definam todas as variáveis em operação, não lidamos com privações tão objetivas ou facilmente localizáveis. Inclusive, não há como fazer uma checagem rápida e precisa de todas as condições ambientais que exerceram — e ainda exercem — influência sobre a resposta que está sendo analisada.
Esse entendimento vai sendo construído ao longo do processo terapêutico, à medida que um diálogo extenso e cuidadoso ganha forma e começa a montar, pouco a pouco, um quebra-cabeça de interações.
Um cliente que liga constantemente para a namorada, por exemplo, não está em “privação de ligação”, muito menos em “privação de namorada”. Também não se trata apenas da falta de “Ana” (caso esse seja o nome da namorada). Não é algo mensurável como a quantidade de água para o rato.
Na clínica, a análise inicial é sempre posterior aos acontecimentos — trata-se, no caso da AC, de tentar estabelecer condições de controle e previsão com base nas contingências já em curso.
E vamos complicar um pouco mais: essas ligações acontecem em horários distintos, em dias variados, sob circunstâncias aparentemente aleatórias. Pois bem, onde foi parar aquela clareza que tínhamos na faculdade, quando estudávamos os termos isoladamente?
O fato é que os comportamentos dos clientes, quando analisados na clínica, estão inseridos em redes de contingências muito mais complexas, nas quais as privações, saciações ou aversividade que aprendemos a identificar nos livros e manuais nem sempre se apresentam de forma tão óbvia.
O QUE SÃO CONTINGÊNCIAS MOTIVACIONAIS?[3]
No contexto da TCR, o termo Contingência Motivacional tem uma definição específica e operacional: trata-se de uma “nova contingência”[4] que entra em vigor alterando as funções dos termos da tríplice contingência que já estavam operando.
Ou seja, a Contingência Motivacional:
- Atualiza as funções dos estímulos presentes: por exemplo, um SD que antes evocava certa resposta pode deixar de fazê-lo, ou passar a ter nova função;
- Altera a emissão ou supressão de respostas previamente selecionadas: o que chamamos de manifestações funcionais;
- Muda as funções das consequências selecionadoras: o que antes funcionava como reforçador pode não reforçar mais, ou o contrário;
- Pode modificar as funções atribuídas pela história de contingências anteriores;
- E ainda evoca variabilidade comportamental, seja para expansão ou restrição de repertório.
Em resumo: uma Contingência Motivacional altera o funcionamento daquilo que já estava em operação. Ela não é um estado interno, nem uma condição fixa do passado — embora se organize a partir das possibilidades criadas por ele. Trata-se de uma mudança relacional que reorganiza o que já havia sido funcionalmente estabelecido.
O termo funcionalmente torna-se ainda mais presente e necessário do que antes — embora, de fato, nunca tenha deixado de ser uma peça fundamental na nossa análise de contingências. Os estímulos existem dentro de relações funcionais com o organismo que opera no ambiente.
Nesse sentido, um SD não é apenas um estímulo presente no ambiente, mas um estímulo que, devido às alterações promovidas por uma Contingência Motivacional, passa a evocar novas manifestações funcionais que, por sua vez, compõem o desfecho da tríplice: a consequência com função selecionadora, o reforço.
EXEMPLO CLÍNICO: O CASAMENTO
Imagine uma cliente que está em um relacionamento e, de repente, passa a se sentir angustiada diante da ausência de declarações explícitas sobre casamento por parte do parceiro.
Até então, esse comportamento do parceiro — não tocar no assunto — não produzia incômodo significativo. No entanto, após uma conversa com a mãe, um post nas redes sociais de uma amiga recém-casada e o término recente de uma colega que também “esperou demais”, instala-se uma nova contingência de reforçamento.
Essa nova relação com o ambiente social e com os estímulos que tiveram suas funções alteradas, modifica:
- A função dos eventos presentes: o silêncio do parceiro, que antes era neutro, passa a ter função aversiva;
- As manifestações funcionais: a cliente passa a emitir falas insistentes, monitorar sinais, cobrar declarações, evitando o silêncio;
- As consequências: um gesto afetuoso que antes era suficiente deixa de funcionar como reforçador; apenas falas sobre compromisso passam a operar como sinais de segurança.
Nesse ponto, dizemos que há uma Contingência Motivacional em vigor, pois uma nova configuração ambiental alterou as funções dos elementos que já vinham operando na relação.
Não se trata de uma descoberta profunda e íntima de “um desejo de casar”, mas de uma reorganização das relações funcionais.
O que antes mantinha a estabilidade do vínculo perde força, e novos controles passam a ser exigidos para manter o equilíbrio.
QUANDO O REFORÇO VEM…
Muitas vezes, a cliente relata uma sensação “incrível” quando o parceiro finalmente menciona planos futuros ou propõe uma viagem. Isso não significa, necessariamente, que ele tenha mudado de atitude, mas que, dentro da nova contingência motivacional, qualquer amostra reforçadora isolada passa a ter um valor amplificado, funcionando como sinal temporário de segurança e proximidade, mesmo que nada tenha sido efetivamente reconfigurado.
Esse fenômeno revela como uma Contingência Motivacional pode alterar a eficácia dos estímulos, transformando eventos que antes eram triviais em experiências com alto impacto emocional.
A COMPLEXIDADE DOS RELACIONAMENTOS REFLETE E AJUDA NA COMPREENSÃO DO CONCEITO
Atender alguém em sofrimento por circunstâncias de relacionamento afetivo não se resume a identificar o que está faltando e tentar preencher esse vazio. O cliente pode estar agindo sob controle de novas contingências, reorganizadas recentemente. Perceba que, ao falarmos em “nova”, estamos nos referindo a uma atualização funcional, não a algo inédito ou misterioso.
Como se trata de uma dinâmica inserida em um fluxo contínuo, novas informações podem modificar a forma como o cliente verbaliza o processo de afastamento e enfrentamento da perda.
Por exemplo, se uma amiga pergunta: “O que você sente por ele?”, a cliente poderia responder: “Ainda o amo. Vou tentar dar uma segunda chance, se ele prometer algumas coisas.”
Veja que a expressão “ainda o amo” existe dentro de um contexto relacional específico, no qual um sentimento é verbalizado para um ouvinte. A segunda parte da resposta também se sustenta nesse cenário.
Entretanto, no mesmo dia, a cliente descobre que o ex entrou em contato com uma amiga — talvez alguém com quem já houve um flerte ou alguma desconfiança anterior de traição. Se a mesma pergunta for feita novamente, a resposta pode mudar para: “Eu amo ele, tenho certeza disso. Mas ele não me ama. Não vale a pena tentar novamente.”
Observe atentamente: dependendo do profissional da saúde mental que analisasse essa mudança de fala, ela poderia ser enquadrada em diferentes categorias diagnósticas, conforme os manuais classificatórios disponíveis, sem considerar o que, de fato, mudou: a Contingência Motivacional em operação.
Apenas para não alongar demais este ponto, vale destacar que uma nova contingência modificou os elementos anteriormente estabelecidos. Não se trata apenas de identificar um estímulo isolado com função aversiva — ele mentiu ou é capaz de me trair —, mas sim de compreender toda a relação funcional envolvida, que passou a exercer controle sobre o comportamento de evitá-lo.
Ainda assim, isso não significa ausência de sofrimento. A nova contingência — estar sozinha — também atualiza a percepção de realidade à qual a cliente estará exposta. Estímulos antes neutros, presentes em momentos anteriores da relação, passam a funcionar como lembretes daquilo que se foi. Os objetos permanecem os mesmos, mas agora estão funcionalmente atualizados. Não foi a regra que mudou, muito menos o lugar dos objetos em casa; foi a contingência motivacional que modificou o potencial evocativo e selecionador de cada estímulo.
O PAPEL DO TERAPEUTA: ANALISAR E MODIFICAR CONTINGÊNCIAS EM OPERAÇÃO
O papel do terapeuta, nesse contexto, é reconhecer que os comportamentos apresentados pelo cliente estão sob controle de contingências motivacionais em operação, e que uma intervenção eficaz será aquela capaz de:
- Identificar os elementos que tiveram suas funções alteradas;
- Compreender quais estímulos se tornaram aversivos ou reforçadores dentro da nova configuração;
- Promover novas contingências, capazes de modificar essas funções e produzir alternativas comportamentais mais amplas e adaptativas.
A psicoterapia, nesse sentido, é ela mesma uma Contingência Motivacional (exemplo extraído do texto, ainda não oficial, de Hélio Guilhardi), pois altera as funções atribuídas ao sofrimento, ao comportamento do outro e às próprias escolhas do cliente.
É nesse processo que a mudança se constrói.
Em resumo, as Contingências Motivacionais explicam não apenas por que alguém sente ou age de determinada maneira, mas como o ambiente está operando neste exato momento para manter, enfraquecer ou evocar novos comportamentos.
A clínica é o espaço onde essas contingências podem ser analisadas e transformadas.
[1] Não estou minimizando a complexidade dessa atuação. O que julgo aqui é a diferença existente entre a coleta de dados e a potencialidade de manipulação das variáveis. Esse aspecto é fundamental: não se trata de um julgamento de importância, mas do reconhecimento das diferenças e de suas implicações práticas.
[2] Quem teve o prazer de estudar Psicologia na época em que a disciplina de Experimental era realizada com organismos vivos — e não por meio de simulações em ambientes virtuais — sabe que não é tão simples assim. Ainda assim, compreende que a organização do experimento, nessa modalidade, exige competências que pertencem a um grupo pequeno e específico.
[3] Acompanhem o trabalho do professor Hélio Guilhardi e o ITCR para manterem-se atualizados em relação a essas definições.
[4] Usei aspas na expressão “nova contingência” para reforçar duas ideias: 1) Para alunos iniciantes na prática clínica e na Análise do Comportamento, há uma curva de aprendizagem significativa até que se consiga atuar de forma segura com a abordagem. Às vezes, até a própria noção de “contingência tradicional” ainda está em processo de assimilação. Embora a definição seja clara, a generalização para a prática clínica nem sempre é imediata. Nesse sentido, as aspas funcionam como um autoclítico que sinaliza: “nova contingência” não implica em um novo nível de complexidade, mas sim em uma reorganização conceitual daquilo que já conhecíamos. 2) A expressão também pode gerar questionamentos conceituais legítimos: existe uma contingência dentro da outra? Uma contingência causa a outra? A contingência que surge explica a anterior? E a anterior explicaria a nova? Como determinar o papel da nova contingência em relação àquela já estabelecida? Ao marcar a expressão com aspas, busco justamente sinalizar que essas perguntas são esperadas e fazem parte da análise refinada que propomos.

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